terça-feira, 17 de janeiro de 2012

DETALHAMENTO DO PROJETO ESCRILEITURAS


Eixos temáticos:
·         Educação básica
·         Educação de jovens e adultos
·         Superior: alunos de licenciaturas
·         Profissional: professores da rede pública de ensino

Linha de pesquisa:

Filosofias da Diferença e Educação

Justificativa:

Com base nos dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) acerca do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), concordamos com a necessidade da criação de propostas de estudos e de pesquisas empenhadas na qualificação da Educação Básica no Brasil. Sabe-se que uma das metas estabelecidas pelo MEC no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) é, justamente, elevar o IDEB brasileiro. Contudo, para que se concretize a elevação dos índices educacionais, torna-se cada vez mais imprescindível o investimento em ações voltadas à importância do processo de alfabetização em crianças, jovens e adultos nas diferentes etapas da aprendizagem. Nesse sentido, o projeto de estudo e pesquisa aqui apresentado, oferece parceria e solidariedade às atuais preocupações do governo federal em relação à qualidade do ensino público.
            Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio à vida insere-se, portanto, num cenário que busca alternativas de compreensão e de superação dos resultados apontados pelo INEP; principalmente aqueles que sinalizam as dificuldades de linguagem na escola, expressadas pela grande maioria dos alunos da Educação Básica através da avaliação da Prova Brasil. Dificuldades, estas, pelos mais diversos motivos, relacionadas ao próprio uso e produção da linguagem, ou seja, relacionadas à associação entre conteúdos escolares e operações mentais que envolvam leitura, interpretação, escrita, variações acerca de um mesmo tema, relações entre fatos, saberes e locais, diferentes usos da linguagem, singularizações, raridades, processos de pensamento e de expressão, relações espaciais, temporais e históricas, sensibilidade para as artes como modo de expressão e de invenção, bem como as habilidades e competências necessárias ao estabelecimento de problemas no campo das ciências exatas.
Como se trata de um projeto desdobrado em oficinas de escrileitura, operamos com este conceito a partir das indicações de Corazza (2007): como texto que reivindica uma postura multivalente do leitor, de co-autoria.  Assim, a idéia da escrita como um processo deescrileitura, remetido a uma “escrita-pela-leitura” ou uma “leitura-pela-escrita”, propõe um texto aberto às interferências do leitor e, portanto, sempre escrevível de diferentes maneiras. Trata-se do texto produtivo, ou seja, do texto que ganha existência na medida em que o seu leitor é um produtor de significações
Nesse sentido, é com o espírito da produção que o plano de trabalho, aqui apresentado,  se justifica enquanto modo de intervenção bio-filosófico-pedagógica nas aprendizagens que, por excelência, envolvem processos de alfabetização e de desenvolvimento do potencial humano criativo em diferentes etapas da Educação Básica e Superior. Sua extensão aborda a alfabetização como prática e como conceito que está para além de uma apropriação do código da escrita, sabidamente necessário para responder de maneira satisfatória às demandas sociais. Entende-se a leitura e a escrita como práticas que acontecem em diferentes suportes, de múltiplos modos; como ações criadoras de sentidos diferentes para cada “leitor-escritor” em seus processos de subjetivação e que, portanto, entram na linguagem em suas variadas formas. Nessa perspectiva, propõe-se a criação de outros modos de pensar o vivido no campo das singularidades, oportunizando, através das oficinas de escritura, a experimentação de outras maneiras de expressão, de afectos e de modos de enfrentar e de ordenar o que ainda não está materializado no campo da aprendizagem.
O trabalho com oficinas de escritura implica, necessariamente, o campo do vivido, dos sentidos, das sensações ou das invenções. Cada uma das oficinas compreende um convite à escrita e à leitura: escrileitura que se desdobrará em saberes, histórias, aventuras, problematizações, musicalidade, arte, fantasias e fruições.
Deseja-se um encontro produzido na multiplicidade do “leitor-escritor-texto”, no qual o texto se exerça como um ato de sedução do pensamento, que seduz o outro porque o deseja. Em Barthes (2008, p. 20), temos que “o brio do texto (sem o qual, em suma, não há texto) seria a sua vontade de fruição: lá onde ele excede a procura, ultrapassa a tagarelice e através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos adjetivos – que são essas portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário penetram em grandes ondas”. Um modo de texto por onde o autor seja entornado na própria intersecção “escrita-leitura”, cujo processo de decomposição e de desocupação dos territórios identitários, permita uma possibilidade de abertura ao inusitado, à raridade e ao desejo de escrever. 
            Trata-se de um projeto que pretende explorar e ampliar as possibilidades do trabalho com diferentes linguagens, provocando outros modos de relação com a escrita, com a leitura e com a vida. A modalidade de ação proposta através de oficinas, nesse sentido, compreende a experimentação como condição da aprendizagem, uma vez que possa convocar para a ação do pensamento. Investe-se, portanto, em processos disparadores da  criação textual, na medida em que colocam um problema em cena: a ser lido, falado, enunciado, perguntado, transformado e escrito em suas variadas formas.
   Para a escrita que acontece nas aberturas experimentais, o conceito de experimentação aqui utilizado, ultrapassa a idéia ilusionista de uma etapa metodológica previsível e garantida ao acesso ou à comprovação do conhecimento. As experimentações textuais propostas neste projeto, não buscarão a generalização do particular ou a comprovação de quaisquer tipos de “evidências”, tampouco compreenderão a noção de conhecimento como algo de uma natureza exclusivamente empírica ou ainda passível de desvelamento. Mas tratarão, como encontramos em Nietzsche (2005), da vida como obra de arte: do desordenamento necessário à criação; da idéia de afetação, de transgressão e de abertura ao encontro inesperado com outro corpo, seja ele um texto, uma imagem, uma pergunta, um pensamento, um humano... Trata-se de por em experimentação o que não se conhece, através de uma espécie de infância do mundo. E, na extensão de sua estrangeiridade, fazer falar e escrever outra língua na liberação de forças mais criativas.
O conceito de escrileitura, portanto, insere este projeto na dimensão imaginativa de toda a escritura ou texto de fruição. Ou seja, lidará com os modos de produção e de inscrição de sentidos, de histórias, de vidas, de coisas no mundo, etc; que acontecem através e nas brechas experimentais, situadas entre espaçamentos não pensados, no imenso campo de possibilidades que há entre os objetos brutos, para dizer da importância do outrem na criação. A escrileitura, como exercício imaginativo, encontra-se na própria experimentação do pensamento. Está na abertura. Ela pode produzir intensidades de tal modo que se distribuam para além do deslocamento físico. Como no olhar de Deleuze (2001), é muito viável que se possa experimentar todo o tipo de vida sem, necessariamente, qualquer movimentação mecânica ou instalação do real:

As intensidades se distribuem no espaço ou em outros sistemas que não precisam ser espaços externos. Garanto que, quando leio um livro que acho bonito, ou quando ouço uma música que acho bonita, tenho a sensação de passar por emoções que nenhuma viagem me permitiu conhecer.

Assim, as escrileituras podem abrir um universo de sentidos e de imagens outras; entre estas, é possível visualizar a figura do rizoma, por exemplo, abordada em Deleuze. Tessituras, velocidades, conexões, intensidades, singularização. Esquizolinhas... "Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas" (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.17). Portanto, "há tipos de linhas muito diferentes na arte, mas também numa sociedade, numa pessoa" (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 47). Interessam, aqui, as noções de encontro, de acontecimento e de interceptação do Mesmo, para pensar e produzir novas escritas e aprendizagens. A experimentação, neste plano de trabalho, é entendida como algo que possa forçar o pensamento, com a potência do esfacelamento necessário daquilo que impede o estabelecimento de outros modos de relações, de outras aprendizagens. É tributária da noção de corpo rizomático, atravessado e composto por uma infinidade de linhas e de fluxos que fogem ao infinito, atravessado por cheiros, imagens, hormônios, afetos, sensações, ondas sonoras, gravitacionais, dinamizadas... Enfim, um modo de produção textual que possa fazer saltar do sítio sombreado de velhas árvores conhecidas do Éden (representacional) em direção à massa disforme da imaginação, por onde brotam desertos, saqueadores, combates, festas dionisíacas e intensidades que não se submetem ao impedimento cognitivo,  mas que inauguram novas formas de “ler-escrever”.
As leituras de Foucault (2007) e Deleuze (1997) permitem-nos pensar o escrileitor como um corpo que escorrega sobre a superfície livre, capaz de navegar a experimentação da escrita em toda a sua extensão, mas que também necessita de estriamentos para que possa estabelecer territórios de aprendizagem.
    A produção de escrileituras pode referir um contágio ou um convite do “escritor-leitor” à invenção de outra língua, na aventura da criação e da reverberação de novos sentidos, por onde não há suporte ao “re-sentimento”. No entanto, se a linguagem dispõe-se ao infinito, na fabricação de conceitos que se articulam ilimitadamente, a palavra, de certa forma, impõe limites aos significados que pode expressar. As palavras, a serviço de nomeações e de generalizações do comunicável, sugerem uma compreensão finita da realidade. Assim posto, a escrileitura se ocupará de conexões estrangeiras à palavra em si mesma, que justamente a transbordam em sua materialidade para inscrever-se na inauguração de uma língua escapista e inventora de conectores.
Trata-se da dispersão lingüística produzida nos espaços intermediários da comunicação. Espaços, estes, situados entre o dito (nomeado) e o “não dito”. Brechas por onde a língua se distrai dos modelos representacionais e força a palavra a fazer outros nexos, a dizer o que ela não poderia dizer. Quando faz passar o pensamento e abre-se para a repetição da singularidade. Nesse sentido, o escrileitor pode ser entendido enquanto corpo-aberto ao movimento da criação de conceitos, como se estes fossem a própria encosta do ‘guardador de textos’, como que um lugar de abrigo, uma casa movediça com janelas e portas abertas. Os conceitos, diz Deleuze (1997, p.51), “são totalidades fragmentárias que não se ajustam umas às outras, já que suas bordas não coincidem. Eles nascem de um lance de dados, não compõem um quebra-cabeça. E, todavia, eles ressoam...”. Para fazer ressoar um conceito, o escritor passa pela terra desértica, pré-conceitual e anterior à escrita: lugar de reverberação da história. Neste plano, um conceito pode retumbar e somar-se a outro(s), produzindo um terceiro, quarto, quinto.... novo conceito, inaugurando a diferença a cada repetição, conexão e deslocamento conceitual. A criação, nesse sentido, é uma necessidade de efetuação, produzida pelo estancamento do fluxo já conhecido e contínuo: quando algo do fora da linguagem força o descontínuo de uma existência em sua diferenciação.
Em Diferença e repetição, Deleuze (1988) propõe a reversão do conceito de repetição. O filósofo parte do suposto de que a repetição não é a generalidade, opondo-a exatamente àquilo que compreendemos enquanto reprodução do Mesmo. Isso faz nexo com a ótica pela qual é possível tratar a dinâmica da repetição lingüística sem ligá-la às idéias de equivalência ou semelhança. Nesse sentido, o escrileitor pode produzir  seu texto no arranjo de conceitos, criando novas linguagens num processo de repetição como comportamento, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tenha semelhante ou equivalente. Do ponto de vista da repetição do semelhante (da generalidade), enxerga-se a representação do particular como se fosse o próprio particular (supostamente substituído) e ignora-se qualquer possibilidade de diferença: importa, aqui, a cópia do modelo, ou seja, a escrita descritiva. Trata-se da generalização do particular. Assim, enxerga-se um texto-desenho como representação de algo, de algo passível de substituição. No entanto, do ponto de vista da “repetição” diferencial, proposta por Deleuze (na reversão do conceito), enxerga-se uma singularidade sem equivalente, insubstituível. Sua potência está em introduzir a diferença. Um texto decorado, será sempre outro a cada repetição: no lugar do Mesmo se instala, agora, a diferença. Escrever, nesse sentido, é singularizar algo durante um processo de aventura que se repete.
Tomar a escrita e a leitura como aventura, é, necessariamente, vê-las como um exercício de pensamento. Sendo assim, cada exercício de pensamento refere uma temporalidade própria ao período de sua viagem: com paradas provisórias, velocidades que passam da aceleração infinita às lentidões necessárias, esgotamentos, vôos alucinados, desatinos, excessos, escassezes de idéias, combates, multidões, inspiração, musicalidade, solidão e fome. É dizer de uma escrileitura que solicita outro tempo que não este, cronológico, mas que pede passagem para existir ao seu modo, de outras maneiras possíveis de inscrever sentidos e signos, no qual a mudança de posição e de significações dos códigos também abra passagem às escritas formais; posto que o sucesso escolar implica, essencialmente, o exercício das práticas sociais de leitura, numeramento, oralidade e escrita.
Mediante ao plano de trabalho apresentado, em sua dimensão multidisciplinar da alfabetização, trata-se de desenvolver estudos e atividades no campo das múltiplas linguagens expressas nas oficinas propostas: biografemática, filosófica, musical, teatral, artística visual e lógico-matemática.


Objetivos:

·         Produzir, em nível de mestrado e de doutorado, estudos relacionados ao conceito de aprendizagem, de letramento e de escrileitura na contemporaneidade.
·         Investigar as relações entre modalidades de pensar e modalidades do aprender.
·         Constituir espaços de pesquisa e de in(ter)venção nos modos de ler e de escrever. 
·         Contribuir na formação de recursos humanos em educação, através de experimentações previstas com docentes da rede pública de ensino e com alunos de licenciaturas.
·         Criar, nas oficinas de escritura, cenários de autoria e leitura junto aos alunos da Educação Básica (Ensino Fundamental, Médio e Educação de Jovens e Adultos) envolvidos no projeto.
·         Expandir o conceito de texto para além das noções de registro e prazer, que permita uma possibilidade ao inusitado, à raridade e ao desejo de ler e de escrever, ultrapassando assim as escolhas definidas por territórios identitários.
·         Desenvolver Oficinas, Colóquios, Cursos de  Extensão e Ciclos de Conferências, orientados e ministrados pela equipe do projeto; professores da Linha de Pesquisa 09Filosofia da Diferença e Educação do PPGEDU/UFRGS; bem como por pesquisadores integrantes e colaboradores do Grupo de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações;

Metodologia:


Pensar um método que pensa o próprio caminho da investigação, que se utiliza de um percurso desconhecido para traçar desvios e operar outras rupturas no já sabido, reconhecido e legítimo. Um método que pode estabelecer suspeitas e propor a reversão dos saberes pretensiosamente universais. Poder-se-ia dizer que se trata do método genealógico inaugurado por Foucault em 1961, na História da Loucura. No entanto, é bem possível que esta “inovação metodológica”, como bem refere Roberto Machado na introdução do livroMicrofísica do poder (Foucault, 1990), nos sirva para pensar o pensamento e os saberes tanto discursivos quanto não-discursivos produzidos ao longo da história da Educação em seus dinamismos espaço-temporais.
Pesquisar acerca da efetuação de um determinado saber em diferentes épocas e em diferentes locais, a fim de pensar os meios e as condições que possibilitaram o seu surgimento, bem como a instituição de uma nova prática discursiva nomeada por letramento. Trata-se de uma abordagem acerca das relações entre os saberes, observando as compatibilidades e as incompatibilidades que permitem individualizar formações discursivas, uma vez que são produzidas em espacialidades e temporalidades distintas; ou, ainda, “... uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito...” (Foucault, 1990, p. 7).
O método foucaultiano, tributado na análise dos conceitos que este projeto convoca a pensar, sejam eles todos atravessados pelas noções de letramento, texto, aprendizagem, pensamento e criação; implica, de antemão, uma ruptura com a noção de “sujeito-unidade”, portador de uma essência ou humanisticamente transcendente (ao modo como é tratado na filosofia humanista do pensamento moderno), e nos leva a incursionar outro conceito de sujeito. Como forma de superação do platonismo analítico-cristão da finitude, Foucault propõe uma concepção de sujeito bastante afastada do cartesianismo e da análise kantiana ao perguntar-se: “qual é, pois, a relação e a difícil interdependência entre o ser o pensamento? Que é o ser do homem, e como pode ocorrer que esse ser, que se poderia tão facilmente caracterizar pelo fato de que ‘ele tem pensamento’ e que talvez seja o único a possuí-lo, tenha uma relação indelével e fundamental com o impensado? (Foucault, 1999, p.448). Há, portanto, uma interrogação acerca do modo de ser do homem e sua relação com o pensado e o impensado transcendental. Propõe-se, no entanto, que o pensamento se dirige ao impensado e com ele se articula, de modo que o sujeito seja contemporâneo do impensado e não posterior a ele, como propunha a analítica da finitude. Não sendo funcionário de pensamentos ainda não pensados (universais e anteriores a si mesmo), o sujeito pode ser tratado como uma realidade histórica do presente, constituída por determinados saberes. Posto assim, não há como tirar-lhe todas as máscaras para, enfim, desvelar uma identidade primeira, justo porque não haveria uma identidade recolhida em si mesma. A pesquisa genealógica, ao contrário, voltar-se-á para as aventuras e desvios que puderam ter acontecido, bem como a  todo tipo de  disfarce possível. O genealogista, por assim dizer, é uma espécie de “escutador” da história, que recusa a pesquisa da origem, como bem sugere Nietzsche ao tornar-se um sintomatologista da civilização.
Nesse sentido, a força do método proposto por este projeto de pesquisa, de inspiração nietzscheana, foucaultiana e deleuziana, além de problematizar e desconstruir as noções de letramento vinculadas à filosofia humanista, principalmente aquelas implicadas por conceitos de sujeito, de realidade e de verdade, também nos arremessa à experimentação da terra desconhecida (a ser pesquisada), sem a firmeza do solo platônico-cristão das representações. Foucault, em um devir estrangeiro, nos arrasta à estrangeiridade da pesquisa e ao estranhamento de todo o tipo de convicção quando topamos o convite do arqueólogo em seu “trabalho-viagem” exploratório.  É como arqueólogos, então, que nos colocaremos ao lançar mão do método genealógico da dispersão, ou seja, de um método cuja preocupação maior está justamente no jogo do discurso, no jogo que lhe é imanente, no qual seus enunciados aparecem de modo disperso e heterogêneo, em um estado tal de revezamento que permite trocas de posições, supressões, substituições e aparições descontínuas, em estado dançante, molecular e  caóide; ao qual pode-se imprimir, a qualquer tempo e interesse, um determinado ordenamento político. Cabe ao método genealógico, então, pesquisar este solo de estabelecimentos conceituais “verdadeiros” e supostamente universais. Ele colocará o conceito em perspectiva genealógica, investigará as variações espaço-temporais e mudará as perguntas generalizadoras que buscam “o que é aprender?”; “o que é ensinar?”; “o que é ler?”; o que é escrever?”;  “o que é pensar?” etc.; em detrimento de  “quais as condições possíveis para o pensamento?”; “em que condições acontecem a leitura e a escrita?”; “como e quando surgem leitores-escritores?”
Trata-se de uma investigação que colocará em evidência o drama do saber investigado, posto que estará atento as suas irregularidades e variabilidades, problematizando a sua dimensão hegemônico-representacional. É, portanto, movimento descontínuo que nos permite explorar como exploradores em terra desconhecida e encontrar raridades ou individuações não recobertas pela imagem do pensamento representacional.
            Nesse sentido, o pensamento de Foucault nos permite uma aproximação ao pensamento deleuziano. Permite que pensemos a pesquisa como aventura ou viagem... Da qual não se pode desembarcar com o mesmo corpo.  De uma aventura que nos coloca a conhecer caminhos ainda não pensados, que revertem palavras de seus sentidos e fazem escapar o pensamento. Há quem chame de a grande aventura do espírito, em se tratando de nossas corporeidades. É a aventura do nascimento e da morte, do acontecimento que nos torna inteiramente outro: por onde não há mais reconhecimento, mas as possibilidades conceituais da linguagem.
Portanto, a pesquisa propõe-se a enfrentar o “perigoso” plano de imanência, sobre o qual os corpos encontrarão velocidades e variações infinitas. Por onde “o pensamento reivindica somente o movimento que pode ser levado ao infinito” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 53). Em Deleuze, um conceito é um estado caóide.  Algo desta afirmação compõe a imagem de um mergulho no caos, no fora da linguagem representacional. Deste mergulho, breve, opera-se um retorno de pensamento: do caos tornado consistente. Uma espécie de salto radical sobre a loucura, na inversão das palavras, no reverso dos sentidos, no abandono de convicções, no seu devir criança... Enfim, o próprio acontecimento. O acontecimento, diz Deleuze (2000, p. 152), “não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera”, uma vez que “o ator efetua o acontecimento...” porque lhe é necessário e não há como não fazê-lo.
Se as caóides, as três filhas do caos, a filosofia, a ciência e a arte, são formas de pensamento, como afirmam Deleuze e Guattari (1997), são realidades produzidas em planos que recortam o caos. Planos, estes, que só podem coexistir na dimensão de um “estado de sobrevôo”, uma forma em si de junção a qual Deleuze e Guattari em O que é a filosofia?nomearam por cérebro. Em se tratando de uma pesquisa que pretende ocupar-se da aprendizagem enquanto processo de pensamento e, portanto, produtora de leituras e de escritas desejantes, há de se retornar do estado caótico: traçar um programa e cartografar o ambiente da pesquisa durante o próprio percurso. Ver pontos que se sobrepõem, ver as recorrências, os detalhes de raridade. Trata-se de um método que só é possível no tempo lógico de sua produção. Estabelecido nas fronteiras do território pesquisado, possui bordas que demarcam extensões de forças, cujas contrações podem, a qualquer tempo, ora repulsar e ora aspirar outros objetos de análise.  
Arqueologicamente, as oficinas de escritura constituem uma metodologia encenada, que deseja colocar o pensamento em cena, desde um modo possível de pesquisar, desalojado de um contínuo de procedimentos pré-definidos, mas que compõem uma prática a ser inventada, documentada, analisada e produtora de sentidos, afecções, conceitos, relações  e aprendizagens.
            Nesse “com-texto” de procedimentos, pretende-se constituir uma dinâmica em dois planos: um, diz respeito à modalidade das oficinas enquanto modo de intervenção na leitura e na escrita de seus integrantes; o outro, coexistente a este, compreende a investigação acerca dos movimentos de pensamento, leitura e escrita que se expressam através das oficinas, envolvendo processos mentais de diferentes ordens: do lógico-matemático-científico, das artes e das problematizações. 
            A metodologia de trabalho empregada no projeto Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio a vida, compreende um modo de intervenção investigativa nas formas de aprender e, como tal, prevê a modalidade de oficinas como estratégia de experimentações textuais. Para tanto, refere um plano de trabalho organizado em tempos, espaços e propostas específicas a cada encontro.
            Em relação aos locais de desenvolvimento das oficinas, considera-se imprescindível que as instituições escolares estejam de acordo com o projeto e que expressem seu conhecimento e congruência. Nesse sentido, como condição para a qualidade do trabalho, propõe-se uma relação de parceria junto às respectivas escolas, principalmente naquilo que diz respeito ao seu funcionamento: contribuição pedagógica e utilização do espaço físico de forma adequada.  


CARACTERÍSTICAS DO EIXO COMUM ÀS OFICINAS

·         Transdisciplinaridade
·         Imersão no estrangeiro através de experimentações com texto e com a leitura
·         Aportagem de problematizações acerca do cotidiano
·         Vivência de diferentes processos de singularização (seu, do outro, do grupo)
·         Articulação com a docência da investigação
·         Produção escrita em todas as modalidades de oficinas
·         Espaço de correlações entre leitura, invenção, sensações, afectos e pensamento

EIXOS ESPECÍFICOS DE CADA OFICINA

·         Artes Visuais
Experimentação de coisas percebidas mas ainda não estratificadas e conhecidas, o que significaria “ver com os olhos” através das sensações. Como em Valéry (2003), operar uma certa disjunção entre o intelecto e a  sensação, a fim de fazer contato com a imagem em seu estado anterior à interpretação, numa espécie de apreensão do fenômeno ainda não codificado no plano dos valores, mas passível de constituir-se como ponto de  partida para a sua escritura. Uma escrita que se efetua na expressão do desconhecido, demoradamente tocado pelos olhos e mãos que, por necessidade, colocarão a visão sobre um suporte. Trata-se do diálogo entre o eu que vê e o eu que desenha ou escreve em processo de criação; ou seja, inventa-se mesmo aquilo que seja mais familiar (na medida em que o modo de ver é inventado através de sua expressão).
Partindo da pergunta de Deleuze (1987) em Proust e os signos: o que a aprendizagem da literatura e da arte tem a ensinar acerca da aprendizagem? Temos que a arte não é um alvo, um ponto fixo a ser atingido, mas um atrator caótico, um ponto tendencial, sem possibilitar falar em regimes estáveis ou em resultados previsíveis. Colocar a aprendizagem do ponto de vista da arte é colocá-la do ponto de vista da invenção. A arte surge como um modo de colocação do problema do aprender. Toda aprendizagem começa com a invenção de problemas.
E neste plano disforme do encontro, temos o nascedouro de uma escrita que faz artistagens, cujo percurso pode liberar o pensamento “daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente” (FOUCAULT, 2007, p. 14). Assim, também, o escritor-artista se “arriscará” ao encontro daquilo que o pensamento ainda não havia pensado.

·         Biografemas
Uma oficina de escritura biografemática: implicada por movimentos disparadores de pensamento. O que significa escrever os detalhes de uma vida, as raridades que passam desapercebidas ou que ainda não foram significadas e partilhadas  no plano cognitivo. Transformar detalhes insignificantes (sem significação prévia) em signos de escrita. Utilizar estes signos (aqueles que podem encantar) como disparadores de um novo texto, ou seja, da escrita de uma vida em experimentação e que, portanto, é produzida na potência da invenção de sentidos. Trata-se da invenção de conectores entre ficção e realidade, entre imaginário e história biográfica. Assim, a escritura ficcional não é menos verdadeira do que aquela que se acredita no terreno da verdade: cada traço, um detalhe e cada detalhe, uma nova escritura. Trata-se, nesse sentido, do acontecimento (escrita) de uma biografia, na qual os traços são inventariados.
Esta oficina, como as outras, convoca seus integrantes à postura da produção: produzir com o autor do texto lido, ao ponto de tornar a escrita uma necessidade de reinvenção do eu que escreve.

·         Filosofia
          Uma proposta de escrita por dentro do próprio texto, no qual o “dentro” comunica-se com o “fora” da escrita e, na mesma superfície, passa a conversar com quem o escreve: objetos que se produzem e ganham vida no exercício da linguagem, e que passam a dialogar e a produzir encontros de autorias inesperadas. O “escrileitor” é também considerado texto, pretexto, personagem e escritor que experimenta a superfície movediça do vivido. Ele compõe autoria com o que encontra ou com quem quer que seja que o encontre.
          Uma oficina provocadora de sentidos e produtora de conceitos na experimentação de sensações, afectos, desejos e outras maneiras de ser e de escrever o inefável... O texto, portanto, é único, múltiplo e infinito, porque ele se fabrica durante o processo da oficina e toma a direção que lhe surge com mais energia, durante a ocorrência de vetores que desafiam a gravidade das forças. Descontinuamente, novas conexões de conceitos provocam o pensamento e permitem uma existência possível no campo da linguagem. Cossutta (2001, p. 40) faz referência ao “intermediário entre a imagem e a forma, entre o vivido e o abstrato” em sua abordagem acerca do conceito. Quanto à semântica conceitual, Cossutta sugere que o conceito “é construído no seio da própria atividade filosófica” e que “o texto rearticula conjuntos nocionais, desloca sentidos fixados e cria expressões novas...”. (p. 42). Nessa perspectiva, a escrita se constitui e se organiza internamente través dos conceitos que consegue anexar ou inventar nas próprias amarrações que se estabelecem. É experimentação de vida na medida em que fabrica aberturas à escrita compartilhada no encontro, através do qual, leitores e escritores podem trocar de papéis e participar um da escrita do outro: quando ler e escrever se confunde na própria coexistência.
          Nesse sentido, o pensamento está na criação de conceitos sempre possíveis, que inspiram a pensar a vida como campo de forças e de multiplicidades, como encontramos em Deleuze (1997, p. 10) ao afirma “... filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.”

·    Pensamento lógico-matemático
             Esta oficina considera a ciência um campo do pensamento e, portanto, uma modalidade de aprendizagem que demanda a ordenação lógica do conhecimento. Envolve, portanto, o estabelecimento de relações entre espaço, forma, grandezas, medidas, números, operações, funções, bem como os modos de tratamento das informações organizadas.
          Nesse sentido, desenvolver a potência do pensamento lógico-matemático implica a criação de desafios científicos, ou seja, um espaço de produção das perguntas necessárias à pesquisa e, conseqüentemente, à ordenação de objetos e de funções. 

·         Música e corpo
Musicalização como possibilidade de invenção, de sensibilização e de problematização. Esta oficina trata a música como um modo de expressão da linguagem que ela própria fabrica. Sua potência consiste, justamente, na abertura a outros modos de sentir e de pensar o cotidiano e, portanto, buscará a criação de conectores possíveis entre os modos de expressão musical e escrita. Serão realizadas audições, performances e composições que possam colocar a música e a escritura em estado de coexistência.
Para o escrileitor, escrever é dar passagem à vibração dos sentidos e daquilo que se pensa, através, mesmo, do modo de olhar e experimentar o mundo. Assim, ele sugere terolhos na ponta dos dedos para tocar a vida com vida. Ter olhos até na ponta da língua para sentir o gosto de tudo pela primeira vez, como se enchesse de estrelas o próprio céu da boca. Ou seja, trata-se de pensar com o corpo, de dentro do mundo, longe de qualquer neutralidade, assepsia ou distanciamento científico; é, também, sentir-se com o corpo todo, deixar-se tocar e colocar-se num estranhamento sonoro, como que uma viagem à infância que habita todo o tipo de novidade e se torna necessária ao espírito.
Importa o que se processa no encontro dos corpos: tímpano, pandeiro, mãos, papel, cordas vocais, etc. Para além dos significados do corpo e do pensamento em si mesmos. O que há nos corpos, diz Deleuze (2000, p. 6), “são misturas: um corpo penetra outro e coexiste com ele em todas as suas partes, como a gota de vinho no mar ou o fogo no ferro. Um corpo se retira de outro, como o líquido de um vaso.”
 Em Nietzsche (2007, p.43), o conceito de corpo aparece voltado à arte em seu caráter mais subversivo, de modo a impor-se diante do pensamento racionalista: “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor (...) Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria (...) O ser próprio criador criou para si o apreço e o desprezo, criou para si o prazer e a dor. O corpo criador criou o espírito como mão da sua vontadeTrata-se, na perspectiva nietzscheniana, de uma corporeidade afirmativa, com potência criadora. Tratar a relação corpórea da música  como também nos sugere o postulado de Spinoza ao referir-se ao corpo humano (2007, p.163): “O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor”.

·         Teatro
Experimentação cênica do pensamento. Modo de expressão que se elabora fora da representação de um eu fixo para, justamente, operar o movimento que há entre os corpos, seja de expulsão, atração e coexistência, capaz de inventar e desfazer personagens. Um modo de expressão textual, com máscaras, ecos e disfarces da realidade, que encena a repetição de gestos corpóreos da diferença e, portanto, encena a potência da singularização possível a ser vivida e escrita.
           Trata-se de um jogo que embaralha e muda códigos de lugares, pela intensidade e pela vida que se afirma na potência do que é inventado. Nesse sentido, é justamente na infância que conseguimos ler e escrever nossos textos. No Abecedário de Deleuze (2001), situando-nos na letra E de Enfance [Infância], podemos encontrar uma aproximação do ato de escrever à idéia de infância e de vida não-orgânica:

 A literatura e o ato de escrever têm a ver com a vida. A vida é algo mais do que pessoal. (...) Mas também não se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos alguma coisa. Escrever é devir (...) escrever é mostrar a vida... É gaguejar na língua... Na Literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite, há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo...


PÚBLICO PREVISTO ÀS OFICINAS:

·         Estudantes de licenciaturas, no eixo Educação Superior;
·         Docentes da Educação Básica de Ensino, no eixo profissional;
·         Alunos da rede pública de ensino, nos eixos da Educação Básica e da Educação de Jovens e Adultos.
                                                
PERIODICIDADE DAS OFICINAS:

·         Encontros semanais ou mais, conforme especificidade de cada oficina

LOCAIS PARA O DESENVOLVIMENTO DAS OFICINAS:

·         Espaços públicos: UFRGS, UNIOESTE, UFPel, UERGS, UFMT, UNIPAMPA e escolas da Rede Pública de Ensino.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Defesa de Tese de Deniz Alcione Nicolay, “Pedagogia das máscaras: aprender com o trágico”.

RESUMO

Trata da estética trágica na Pedagogia. E, por isso, percorre o universo da Tragédia Grega. Não apenas para contemplar a ação, mas para simulá-la, absorvê-la, recriá-la. Para isso, esse texto faz uso de máscaras, de personagens, de lugares, de autores e obras. Também de escolas, alunos, professores, didáticas, procedimentos de ensino-aprendizagem. Não para dizer o já dito, já citado, já escrito. Mas para explorar os recursos expressivos da cena trágica. Faz-se de autor-ator, de intérprete-educador, de anônimo do coro. Ele chama por Dionísio, mas não esquece Apolo. Lê a arte grega a partir da filosofia nietzschiana. Lê a morte pela ótica da vida, a vida pela ótica da morte. Mas não se trata da vida comum. Porém, da vida na perspectiva de potência inesgotável. E, nessa perspectiva, fabula, varia, desloca, inverte, perverte, ensaia, experimenta. Diz não ao senso comum das práticas pedagógicas. Diz sim aos devires estéticos da existência. Quiçá: uma ética. Ética dos heróis homéricos. Das personagens esquilianas. Mas também do indivíduo docente. É fato que não cumpre regras de conduta, de moralização do conhecimento. Embebe-se da cotidianidade. Não para admirá-la. Mas para bestializá-la. Esquece fórmulas prontas, problemas seculares. Fragmenta e percorre, difere e sintetiza. As idéias tomam formam a partir do texto, objeto de estudo. E um texto recorre a outro, intertexto. São blocos de sensações: do amado, do vivido. Também do detestado, do odiado, do cuspido e escarrado. Porém, Dionísio sempre volta com uma máscara diferente. Nesta tese, ele surge como: Rousseau, Santo Agostinho, Raimundo Lúlio, Platão, Heráclito, Montaigne, Comenius, Os Jesuítas, Descartes, Kant; e mais ainda: Homero, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Multiplica-se para se sentir em cada frase. Despedaça-se para iludir o todo. Baila e canta a canção do bode. Bode expiatório da Pedagogia. Mas ela também baila com os sátiros. No seu interior vibra uma didática-artista, vontade de perecer e renascer. De pertencer a todo o universo. Tal Pedagogia foge do pedagógico como as crianças fogem da escola. No entanto, como as crianças, ela insiste. No vão da máscara trágica: o brilho dos olhos permanece.

Palavras-chave: Pedagogia. Máscaras. Dionísio. Tragédia. Pathos.

NICOLAY, Deniz Alcione. Pedagogia das máscaras: aprender com o trágico. 2012. 149 f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.